"Nota: Ora, é sabido que duma maneira geral, logo os artigos frescos sejam lidos, passam estes a fazer parte dum espólio semi-esquecido, lá bem para o fim, ou antes, o princípio do blogue e, como o nosso povo fala e bem: “Longe da vista, longe do coração”; quero, desta maneira, trazer alguns artigos por mim previamente publicados, para bem perto da vista, para que perto fiquem do coração. Doutra forma este blogue pouco terá a ver com Fuzileiros embora escrito e lido por eles."
Por Artur (Leiria) 15683
NÓS, quero dizer: Eu, o Marcolino e o Cabo de mar que era natural da área de Matosinhos, adido à Capitania de Metangula na altura que lá estivemos (ver foto).
O MORTO, era o nosso guia preto que morreu na emboscada, quando subia para a lancha, que o Carlos descreveu e muito bem, no artigo que envolveu o “PIDE e a lancha” na área do Cobué.
Desta emboscada safei-me porque não fazia parte da mesma esquadra/secção do Carlos, por isso tive a boa sorte de nunca ter sido baptizado em combate.
O SUSTO, fez parte do que se passou que, não ganhamos para ele, como é uso dizer-se. Vejamos então:
Dois dias depois da referida emboscada, coube-me a mim, ao Marcolino e ao Cabo de mar, a missão de irmos recolher ao Cobué o corpo do finado marinheiro guia autóctone e transportá-lo por barco até Metangula.
Quando chegamos ao Cabué o seu corpo estava já dentro duma caixa de madeira, tipo caixão, que alguém no local construiu.
Com ajuda de alguns pretos colocamos o defunto dentro dum barco de madeira, o qual viria a ser rebocado pelo barco que levamos a motor, o mesmo, que mais tarde venho a ter o acidente, quando do rebentamento do cabo de aço que me bateu nas costas e braço esquerdo, quando o puxávamos com um cabrestante para for da água - como o Carlos descreveu - e muito bem, num artigo dos seus, essa eventualidade.
O Carlos é, “o descreve tudo”! Está dentro de tudo e mais alguma coisa... Força que a marujada está contigo, Carlos.
Continuando agora:
***
Partimos do Cobué, pela tardinha duma tarde esplendorosa, dia dos mais belos em Moçambique já vistos! A temperatura era tão amena que os nossos corpos não conseguiam sentir os elementos atmosféricos!
Não se sentia frio, calor, vento, humidade, simplesmente uma neutralidade absoluta como nunca antes foi sentido!
O referido barco feito de chapa com o motor “inbord”, lá ia martelando tac… tac... tac…, lago abaixo, direitinho à nossa Metangula, com o dito barco de madeira atrás, preso por uma corda com o morto dentro.
O Cabo de mar era o homem do leme, que por motivos de segurança e referência, ia mantendo o barco a uma distância de uns 2 a 5 km das montanhosas margens do tão maravilhoso lago!
Apesar da presença do morto lá íamos saboreando tão agradável viagem, como se estivéssemos gozando umas merecidas férias! O barco lá ia, tac… tac... tac…, lago abaixo, direitinho a Metangula.
Conversava-se, ou antes gritava-se para se suplantar o barulho do motor; troncos nus para absorção, pelas nossas peles, dos raios infra-vermelhos duma tardinha que nos ia acariciando! Coisa agradável…!
Contudo, algo estranho se ia fazendo sentir… sem que a nossa pouca experiência na vida, nos deixasse pré-assumir o que se estava desenrolando… (!?)
Notamos um manto de nuvens negras, como a morte, subindo sobre o horizonte do sol poente, que se iam formando a passos largos do interior da negra África em direcção ao nosso acariciador sol que ainda estava um pouco mais acima, o qual tanto afago nos vinha dando.
Em poucos momentos houve um tão estranho enlace! Houve uma luta em que, o manto negro ia saindo vencedor como um animal voraz, que engolia por completo o delicioso e envolvente sol que nos dava vida.
Coisa tenebrosa, para novatos como nós, que nunca tal coisa tínhamos visto! Lembro que, já no lusco-fusco que ia restando do tão bruscamente arrebatado dia, vejo uma verdadeira tromba efervescente de água, sobre o lago ainda calmo a caminhar velozmente em nossa direcção.
Foram segundos apenas, que levou o “adamastor” a envolver-nos nas suas garras com uma voz pujante como a dum mar fervente! Noto, mas mal, o CDM a tentar aproar a embarcação contra as vagas. Todavia, tudo foi em vão porque ficamos praticamente à deriva e com o barco meio de água, logo à primeira derrocada…! Com o CDM gritando:
- Tirem a água para fora com os capacetes. Força rapazes.
Tão depressa estávamos na crista duma onda, como de imediato estávamos rodeados por água em toda a volta.
- Não tenham medo que o barco não vai ao fundo, já fiz essa experiência, dizia com voz gritante.
Eu para comigo:
- Como pode ser isso, se o barco é todo de ferro?! A escuridão, no momento, era absoluta! Só era possível ver-se todo este dilema quando, os constantes relâmpagos iluminavam por fracções de segundo tal cena, só vista em filmes!
O barco do morto, por ser leve, via-se constantemente na crista das ondas, ora num lado ora no outro! Pensei:
- Se este for ao fundo vou tentar agarrar-me ao do morto, mas espera aí, se os dois estão agarrados, vão os dois.
Por esta altura, já o Escola Marcolino me tinha várias vezes perguntado:
- Oh Leiria, eu não sei nadar, se o barco for ao fundo salvas-me?
- Não tenhas medo, o barco não vai ao fundo, respondia eu.
Acreditem colegas, o Marcolino só deixou de fazer tal pergunta quando lhe disse:
- Sim Marcolino, se o barco for ao fundo salvo-te.
- Como poderia alguém salvar outro, ou salvar-se a si próprio, ou os dois, numa situação em que não se sabia se estávamos a 2 a 5 ou mais quilómetros de distância da terra e, depois de tanta volta termos dado, para que lado ficava ela!?
Lutamos constante e arduamente na tarefa do despejo da água a qual, a toda a força nos queria engolir! Mas com tenacidade íamos vencendo! Devagar, mas vencendo sempre!
Depois duma boa/má hora passada, que mais pareceram dias, neste possível drama trágico ou marítimo, notamos que os relâmpagos sucediam-se já por detrás, das já referidas montanhas…!
- Santa Misericórdia! Foi a luz da esperança a iluminar os nossos espíritos. Aleluia! Praise the Lord! Ele acabou de nos dizer que não nos queria ainda.
Fomos como pudemos até chegarmos à margem, não de areia, mas sim de pedregulhos de esperança. Fez-se uma fogueira, à qual nos aconchegamos até praticamente de manhã, enxugando assim as nossas fardinhas e agradecendo ao Bom Deus silenciosamente, em nossos pensamentos...
Mais tarde, o barco continuou, tac... tac... tac…, lago abaixo, com o morto atrás, até à nossa querida Metangula! Ao atracarmos na doca, o sol já alto, o CDM diz:
- O único que não se assustou foi o morto. Rapazes desculpem, mas se o barco se enchesse de água tinha ido ao fundo, sei-o porque tinha já feito essa experiência antes. Uma vez sãos e salvos, o nosso contentamento superou tudo. Desculpas e perdão não faziam parte da agenda do dia, porque a vida queria viver, e… ainda hoje vai estrebuchando…
Não importaria agora se o barco tivesse ido ao fundo… mas importa hoje, porque este Escola, ainda cá está para vos contar peripécias e os abraçar...!
Um abraço.
Artur/Leiria