Bem no coração da aldeia e, no lusco-fusco de um dia novo que estava a despontar ouvia-se, ocasionalmente, o guinchar doloroso mas breve dum bácoro que eventualmente iria alegrar a casa dum vizinho pobre…
Festa do pobre, lá para os idos anos da década de 50 era, a simples mas concisa rotina de se abater tão inteligentíssimo animal que, estava sempre a par do que se ia passando à sua volta; sabendo de imediato o destino derradeiro, o qual marca a hora, que o estava esperando.
Num daqueles dias, entre muitos, era o avô materno Joaquim Ribeiro, como era conhecido lá na aldeia, o perito executor de tão macabra tarefa mas, graciosamente, com resultados tão festivos para a família e não só.
O avô Ribeiro, homem de respeito, de semblante imparcial onde não se denotava muitas expressões, de carácter forte, mas dum coração grandioso para com os netos, família e amigos…
Senhor que executava as matanças com uma precisão matemática de cirurgião, e que para tal precisava de um ajudante para segurar o bicharoco pelo rabo e depois pelas pernas de trás logo estivesse o bicho de papo para o ar e, o avô de joelho na goela. De imediato introduzia o “cebolão” – um ferro com ponta aguçada e com uma grande argola para servir como pega do outro lado – entre as mãos do animal, direitinho ao coração que o guinchar desvanecia-se num zás.
A partir daí, processava-se a faina da limpeza da pele; iniciando-se com o chamuscar/queimar de tudo o que era cabelo e, logo de seguida, complementava-se com uma lavagem e raspagem completa, também por tudo o que era corpo do bicho…
Dependurava-se, ainda quente numa viga, puxado por um cabrestante apropriado para tal lide. Sendo de imediato rasgado de cima a baixo, expondo os tais órgãos a que o povo tão sabiamente diz: “Se queres ver o teu corpo mata o teu porco”, encontrando-se já por debaixo da cabeça um alguidar para o aproveitamento do insubstituível sangue para as tão famosas e deliciosas morcelas à moda beirã…!
Logo que o sangue era colhido e as tripas lavadas no rio, havia que começar-se a fazer as morcelas, e nós, os catraios da casa, na rotina do costume, lá íamos aldeia a cima, contentes, distribuindo pelas famílias mais pobres, com os tachos a fumegar nas nossas mãos, as “famosas e deliciosas morcelas” com o caldinho dentro…
Claro que, na nossa inocência, e, sempre na expectativa de que a pobre matriarca, dona da casa, dissesse para se esperar um pouco enquanto rebuscava uns magros cobres para nos pôr um sorriso na cara!
Contentes, sem que a nossa mãe soubesse a razão, sempre prontinhos para continuarmos; perguntando de imediato para quem era agora…? Lembro-me bem ainda, quando me disse para levar às Laúdas. A mãe, franzininha para aí nos seus frágeis 50 anos de idade, vivia com uma filha rondando os trinta, que deformada, caminhava corcunda onde o sofrimento dum corpo que ia sofredoramente vegetando, a obrigava na sua caminhada, a parar para descansar de dez em dez metros!
Vivencias pobres, sem no entanto deixarem de ser ricas de espírito, porque sempre souberam aceitar a realidade dura das suas vidas, uma vez que nunca se lamuriavam, talvez se devesse isso ao facto de não terem conhecido cruzes mais leves… seria?
Que felizardos nós somos…!
1 comentário:
Então vocês não gostam de morcelas?
Comam que de vocês não aceito gratificação, nem que se esfolem.
Mais uma vez parece-me que a malta está formada na praça do desespero!?
Estará?
Eu acabei mesmo de sair de lá e vou marchando já na rua do sol bem-posto!
Ou não fôssemos nós, portugueses escravos dum eterno fadário…
Beijos.
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