segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Só saio daqui morto – Entrevista de Carlos Queiroz

Contra os canhões

Carlos Queiroz na defesa dos seus pontos de vista durante a entrevista que concedeu ao Expresso. "Só saio daqui morto"
 - Como estão as suas relações com Gilberto Madail?
- Perfeitas.

- O cumprimento trocado em Aveiro, no sábado, foi mesmo efusivo. Fizeram ambos questão de mostrar isso?
- Absolutamente. Não só em termos profissionais, como pessoais. Em dois anos a trabalhar de dia, de tarde e de noite, as relações vão-se estreitando. Assim se constroem amizades sólidas.
- Na direcção da FPF, Madail é nesta altura o seu único porto de abrigo?
- Não posso dizer com rigor. Quando vejo certas notícias, não seria honesto se não colocasse uma interrogação a esse respeito. Mas da maioria dos dirigentes têm-me chegado sinais de total confiança e de solidariedade, provavelmente à excepção de uma pessoa...
- Amândio de Carvalho?
- De início, parecia haver uma acção consertada, que começava com o processo e conduziria ao meu despedimento. E Amândio de Carvalho decidiu pôr a sua cara na cabeça do polvo. Aliás, não me surpreende. Antes do jogo decisivo da qualificação (com a Bósnia, na Luz), chamou-me e disse que eu não era o treinador dele, que não tinha confiança em mim para dirigir a selecção.
- Lamenta "que se tenha enganado a opinião pública". Quem é que enganou?
- Na acusação, e em todo o processo, existem questões sem fundamento, inconsistentes, irregulares e enganosas na substância...
- Dê exemplos...
- O fundamento da minha acusação passa por dizer que fiz algo que não fiz.
- O quê?
 - Perturbar a recolha das análises (para o controlo antidoping). Quando depois o próprio processo refere que o médico se sentiu perturbado, e por isso não fez a recolha de um parâmetro...
Por isso falou em negligência médica. Se há um parâmetro que não foi recolhido, não posso ser responsabilizado por isso. Segundo os primeiros relatórios, a recolha decorreu com normalidade. Só cinco semanas depois, quando o médico foi chamado à atenção por ter falhado um parâmetro, é que invocou estar perturbado. Tenho a consciência tranquila. É absolutamente falso - é até uma injúria e uma calúnia - que alguém possa dizer que, por gestos ou verbalmente, terei tido alguma atitude para perturbar ou impedir um ato de que tenho sido incondicional apoiante. Sou treinador há 30 anos, trabalhei nos EUA, Inglaterra, Espanha, África do Sul, Emirados e Japão, além de Portugal. Não tenho dezenas de controlos antidoping, tenho centenas.
- Mas teve um excesso de linguagem?
- Já é público, e declarei ao Conselho de Disciplina, que lamento a fraseologia utilizada para expressar um sentimento de frustração e de impotência. É curioso: normalmente, tenho sido acusado de não usar uma linguagem específica de Bocage. Até é por isso que os jogadores não me entendem - já vi isso escrito! E na primeira vez que tenho um desabafo... é isso que realmente provoca danos na minha imagem...
- O que o incomodou assim tanto?
- Foi apenas uma tentativa de dialogar e tentar convencer as pessoas, para fazer prevalecer o bom senso.
- O que era o bom senso?
- Era não acordar os jogadores (eram 8h), por meia hora ou uma hora. Face à incapacidade do médico da selecção de convencer a brigada da Autoridade Antidopagem, levantei-me da mesa para ir à recepção do hotel conversar com as pessoas. O incidente dá-se quando elas já estavam a caminho dos quartos, a subir as escadas. Não houve possibilidade de diálogo. Aliás, nem me cumprimentaram. Este incidente é uma tempestade num copo sem água. Um facto tornado público para despedir um treinador e o impedir de trabalhar durante dois anos em toda a parte do mundo é no início apenas alvo de um registo de advertência verbal.
- Alguém consegue entender?
- Tenho todas as condecorações que Portugal atribui na área do Desporto, ganhei dois títulos mundiais, criei uma geração de ouro que sustentou o sucesso de 20 anos do futebol português, e no primeiro momento em que há um incidente a suscitar dúvidas não mereço sequer ser ouvido?
O processo tem contornos políticos (Sorriso). São alguns factos.
- Que factos?
- Se não há, cheira. Parece, é a sensação.
- Mencione um facto.
- Tenho a sensação, desagradável, de não merecer a confiança da Secretaria de Estado do Desporto para ser ouvido num processo. Ouvi num telejornal que no caso da clínica de Lagoa, a primeira pessoa a ser inquirida pela Direcção-geral da Saúde seria o médico em causa.
Como vê o papel do secretário de Estado, Laurentino Dias, neste processo (Silêncio) Quero acreditar que se precipitou na forma como apreciou publicamente uma fuga de informação...
Ele condicionou o processo?
- Absolutamente. Acabou por ser um julgamento sumário. Tive ocasião de ver as imagens recentemente, e não gostei muito que uma matéria tão grave fosse apresentada com um sorriso tão aberto como ele mostrou. E eu não tenho nada contra ele.
E acha que ele tem contra si?
- Os factos estão à vista. O que posso sentir quando há duas condutas diferentes (em duas pastas do Governo)? No Mundial, houve casos mal explicados. A lesão do Nani, por exemplo...O Nani aleijou-se porque treinámos num campo de recurso. Uma selecção que pretendia ser campeã do mundo chegou a Lisboa e não tinha relvado para treinar. Era para ser no Estoril Praia, mas em cima da hora detectámos um problema na relva. Ficámos em pânico, à procura de alternativa. Seria extremamente desagradável falhar um treino por tais razões. Infelizmente, o Benfica estava em obras, o Sporting também, o Belenenses não estava em condições. Graças ao Massamá, ao qual agradeço, lá treinámos...
E a lesão do Nani?
- Infelizmente, o Nani bateu com o ombro numa zona do relvado que estava como pedra e partiu a clavícula. E assim Portugal perdeu o jogador mais em forma, com maior potencial para fazer a diferença no Mundial. Se tivéssemos um relvado em condições, o Nani não se teria aleijado. E tudo aconteceu porque quero treinar no Estádio Nacional há dois anos - e há dois anos que não há um relvado em condições para a selecção principal. Há comunicações e chamadas de atenção da própria FPF para o senhor secretário de Estado e para o Instituto do Desporto (entidade responsável pelo complexo), mas nada se resolveu.
- Os pedidos foram feitos quando?
- Nestes dois anos. E com insistências, pois não temos instalações próprias; continua a faltar a Casa das Selecções. Eu próprio telefonei ao presidente do Instituto do Desporto a chamar a atenção para as dificuldades. E no Estádio Nacional não é só a questão dos relvados: há tetos a cair no balneário. Ora, não se pode colocar uma selecção profissional num balneário onde o teto pode cair.
- Porque insistiu em levar o Nani?Tinha esperança na recuperação dele?
 - Não. No dia seguinte à lesão já estava decidida a substituição. Identificada a fractura, em termos médicos não havia qualquer dúvida. Mas os jogadores não são propriamente papel de embrulho. "Partiste a clavícula, vais para casa" - não é assim. Há a personalidade e o carácter do atleta. Uma coisa é a decisão; outra é a oportunidade e a forma como a informação é dada.
Entenderam, então, que o Nani não deveria saber imediatamente?
- Não, ele soube logo. Só que as suas reacções psicológicas foram extremamente dolorosas e complexas. Na primeira ida aos raio-X, o Nani, num ato de desespero, agarrou-se ao manípulo do automóvel e disse: "Se me levarem para lá, eu salto já do carro aqui na auto-estrada". Ele estava determinado. A paixão e a vontade de representar Portugal não tinham limites. Era o Mundial dele, aos 22 anos. Ele pedia-me: "Mister; dê-me dois dias, dê-me dois dias para eu ficar bom". Recusava-se a aceitar que a fractura existia. Sabem como é que eu me sinto ainda hoje?
- Há colegas meus que sabem o que estou a sentir, e o que sempre senti. Não vou dizer, para não me culpabilizar mais. Sei qual era a minha obrigação quando verifiquei que aquele não era o campo ideal para treinar.
- Neste processo, sente apoio de treinadores e da associação?
- Sim, sinto.
- E de Manuel Cajuda e de Manuel José, que o criticaram nesta fase?
- Infelizmente, há sempre pessoas que gostam de dançar nas campas dos outros. Isso não é só no futebol.
Não está a ser mórbido?
- Não. Não quer dizer que eu já esteja dentro da campa. Ela pode estar aberta, mas até eu entrar lá para dentro... vai custar um bocado empurrarem-me para lá.
 Até onde está disposto a ir?
- Vou lutar até às últimas consequências em nome da verdade, da honra e da reputação. Não me levanto da cadeira para comprar um conflito. Mas, neste caso, bateram-me à porta, não viro a cara. Neste processo não há ganhadores, mas alguém vai ter de perder. Agora, já não há recuos, nem compromissos. Não fujo, nem desisto. Só saio daqui morto. Não me intimidam. Posso sair morto, mas não me intimidam.

 "Cristiano Ronaldo foi capitão cedo de mais"


A escolha do Cristiano Ronaldo para capitão foi 100% acertada?
- Devem perguntar a quem tomou a decisão, o anterior seleccionador. Mas manteve a decisão...Há muita gente que não está de acordo hoje, e muitos mais não estavam de acordo na altura. Acho que não foi bom para o próprio Cristiano. Foi cedo de mais. Não digo que não possa vir a ser um grande capitão. Não gosto de revelar conversas privadas, mas vou contar uma: Disse-lhe: já tivemos o desafio de fazer de ti o melhor jogador do mundo; agora temos uma nova etapa pela frente: a de saber se podes ser o melhor capitão da selecção. Estou convencido de que vamos chegar lá. Sabem qual é o problema da relação hoje no futebol com os jogadores?
A única pessoa que usa uma linguagem de 'sim', 'não' e 'talvez' com os jogadores somos nós. Para a maioria dos grandes jogadores, pais, amigos, agentes e jornalistas só usam 'sim' e 'talvez'. E nós às vezes temos de dizer 'não'. Como às vezes os pais dizem aos filhos, porque somos os verdadeiros amigos.
Falou com Ronaldo depois do comentário do "Fale com o Carlos Queiroz"?
- Não tivemos ainda ocasião de falar pessoalmente, mas mantemos contacto.
- Levou a mal o desabafo dele?
- Nestes jogos do campeonato do Mundo há o desejo de ganhar. As coisas têm um contexto. Quem seria eu para fazer um juízo de valor sobre uma afirmação do Cristiano se eu próprio sei o que é estar num momento de tensão?
Levou François Pienaar, ex-capitão da selecção sul-africana de râguebi, ao estágio de Portugal?
- Levei-o para dar o exemplo do que é ser capitão de uma selecção. Pienaar entrou no hotel e cumprimentou os funcionários. Disse a todos: "Obrigado pelo contributo que estão a dar ao nosso país". Ele estava ali para dizer aos nossos jogadores que não se podem inibir de dar 10 passos para agradecer aos adeptos. É nossa obrigação fazer tudo para que os jogadores cresçam no plano social, técnico, profissional, no plano dos comportamentos - e isso também faz parte das minhas preocupações.
Falando do exemplo de Piennar: as reacções de Ronaldo após a derrota com a Espanha foram o que se espera de um capitão?
- Já muita gente falou sobre isso... E estar a repisar... Não é assim que vamos para a próxima etapa. Se ele pudesse voltar atrás... Como se eu pudesse voltar atrás...


"Há amigos que deram o dito por não dito"

É um feito digno de registo ter entre as suas testemunhas, lado a lado, Luís Filipe Vieira e Pinto da Costa. Não é um feito porque nada disto me satisfaz. O que é digno de registo é perceber-se que as pessoas se unem à volta daquilo em que acreditam. É preciso ter coragem para estar ao lado de alguém que, de início, estava sozinho no mundo. E não faltou coragem a muitas pessoas, porque conhecem-me há muitos anos, sabem quem sou, o que penso, e portanto não me têm faltado apoios. Mas também tive amigos que se tinham oferecido para testemunhar e que à última hora deram o dito por não dito.
Ficou ressentido com essa posição?
- Tenho experiência de vida para ser suficientemente tolerante, para compreender estas situações.
Com tantas testemunhas de peso (entre as quais Alex Ferguson e Luís Figo), acha que conseguirá ter mais apoio do seu lado?
- Não estou aqui para desunir os adeptos. Nada disto me agrada. Mas as pessoas têm de compreender que não fui eu quem provocou isto. Não posso ser penalizado ao ponto de dizerem: "Ele tem de perder o emprego". Por uma coisa que não fiz. O absurdo e ridículo disto tudo - uma ideia estimulada pelo Dr. Laurentino Dias - é que há uma ideia: "O homem fez, deve ir embora" Mas também se diz: "O homem não fez, sai na mesma".
"Vim perder dinheiro"
Tem condições para ficar à frente da selecção?
- Da minha parte, absolutamente. E nunca vão ouvir-me dizer, apesar deste linchamento público, que estou perturbado para enjeitar responsabilidades.
Isto não mina a autoridade do seleccionador aos olhos dos jogadores?
- Mina a deste e de todos. Aqui não há super-heróis, porque alguns daqueles que voam sobre as campas não pensem que quando vierem para cá isto será diferente com eles. A gente ilude-se com isso, mas é só no primeiro mês.
Nunca usará este processo como desculpa para eventual fracasso desportivo?
- Nunca. Estive horas e noites para tentar resolver isto, e não deixo de ver os vídeos da Noruega (próximo adversário) e de responder às minhas obrigações.
Está preparado para o pior, o despedimento?
- Ia dizer uma coisa, mas não digo.
- Diga, diga...

- Não, porque podia ser mal interpretado. Mas posso dizer que não tenho nenhuma cláusula de rescisão. Nem de quatro, nem de cinco milhões de euros. Tenho um normal contrato de trabalho. A vinda para Portugal deu-me enormes prejuízos financeiros. Não vim por dinheiro. No Manchester United tinha emprego para o resto da vida. Nesse contrato, por cada prémio que ganhava, o clube depositava outro tanto num fundo para me ser entregue quando substituísse Sir Alex Ferguson ou, se o Manchester United não me desse esse lugar, compensar a minha dedicação. Deixei dois milhões de libras (€2,4 milhões ao câmbio actual) nesse fundo. E o que vim ganhar não chega a 60% do meu ordenado lá. A honra de servir a selecção nacional não tem preço. Durante dois anos, a última vez já depois do jogo com o Brasil, disse ao presidente Madail: no dia em que achar que eu não sirvo para dirigir a selecção, fale comigo. Olhos nos olhos, eu aperto-lhe a mão e cada um segue o seu destino.
Essa disposição ainda está de pé?
- Agora alterou-se. Por se tratar de uma questão de confiança (não com Madail pessoalmente, mas com a FPF).
Ainda tem as portas do MU abertas?

- Eu tenho amigos. Isso é a coisa mais importante. Grandes amigos.

 
(Nota minha: Um pouco tarde, mas para os verdadeiros adeptos do futebol, muito em especial os que não leram isto, nunca será demais.)

1 comentário:

Tintinaine disse...

O homem até pode ser o melhor do mundo, mas ... eu também não gosto dele!
O Mourinho está-se a preparar para ser candidato ao lugar em 2018. E daqui até lá o que fazemos?