Grassa, novamente, grande celeuma por causa da reforma da saúde militar, assunto recorrente desde os idos de … 1977!
Cada vez que chega ministro novo, lá se desenterra a polémica da reforma da saúde militar, grupo de trabalho para aqui, discussão para acolá, memorandos, notícias nos jornais, palpites a esmo. Ninguém se entende, avanços e recuos. Sai montanha aparece o rato.
Alguma coisa se tem feito e parece que ninguém está satisfeito mesmo quando as coisas não funcionam nada mal.
Com o anterior ministro, a cena repetiu-se, mas como não tinha força no governo e no partido que o sustentava, nem grande jeito para a função, tudo se baldou em nada. Agora temos um ministro ignorante da coisa militar, com passado trotskista e anti-militarista primário, mas com peso político. E já demonstrou que não é peco de ideias. Daí a voltar à carga na saúde militar, foi um fósforo.
Desta vez a coisa soa a sério.
Só que não sabemos se são sérias as intenções do senhor ministro e os exemplos dos seus antecessores não são de molde a sossegar-nos.
As principais razões que estão na origem das dificuldades em avançar nesta aérea – que é complexa, é bom que se refira – é a falta de conhecimento dos políticos nesta matéria e não saberem exactamente o que querem para além do “deja vú”: reduzir custos e alienar património, a fim de obter uns trocos que lhes aliviem a tesouraria...
Além disso condicionam, à partida, qualquer reestruturação que se deva fazer, pois não querem ouvir falar em investimento. Ora está para vir o tempo em que se pode fazer uma sem o outro…
A Armada, o Exército e a FA, também não se entendem sobre o que querem – quando querem. Aqui há um problema de raiz que começa dentro de cada ramo: de um modo geral a hierarquia militar percebe pouco de saúde (e não tem apetência para isso), ao passo que o pessoal ligado à saúde, não entende quase nada de tropa (nem tem apetência para isso). Ora como estamos a tratar de dois termos “saúde” e “militar” estes camaradas em vez de se entrincheirarem atrás de eventuais preconceitos melhor seria que aparassem a ignorância que lhes cabe em sorte e tentassem aprender uns com os outros. A crónica falta de exclusividade entre o pessoal da Saúde e as rotinas criadas fazem o resto.
A um nível em que as coisas já não se passam assim, isto é, o Conselho de Chefes Militares, cada um refém de uma realidade distinta, falha-se no entendimento e entra-se em passo trocado com o senhor ministro que nem sabe marcar passo, mas tem o ministro das finanças e um lote de jornalistas à perna.
Entra-se de seguida, em cacafonia.
No meio da cacafonia percebe-se, contudo, que ninguém está, aparentemente, preocupado com a Saúde Militar. O assunto está desfocado.
Sejamos claros: a única razão para a existência de um Serviço de Saúde Militar (SSM), em cada ramo é o apoio às forças em operações. E como a realidade operacional de cada ramo é diferente, cada serviço de saúde tem que estar organizado em conformidade. Nem tudo é imiscível, embora haja actividades que podem ser exercidas em comum. O apoio às tropas, isto é, à sua operacionalidade, corre um largo espectro de acções: selecção e recrutamento; prevenção da doença; aconselhamento de estado-maior; investigação; apoio directo às operações de combate; evacuação e tratamento de feridos, tanto em hospitais de campanha como em hospitais de retaguarda (tudo aliás bem definido a nível NATO), recuperação de indisponíveis a fim de que posam ser lançados novamente no serviço activo; tratamento e assistência a deficientes; gestão de stocks de medicamentos e material de apoio médico e cirúrgico, etc. e nos últimos anos até se têm desenvolvido uma quantidade apreciável de acções saúde militar, no âmbito da cooperação técnico militar, com os PALOPs e em operações de Paz e Humanitárias, que vêm sendo desenvolvidas no espectro bilateral, NATO, ONU, UE, etc.
Ora salvo melhor opinião, não parece que alguém ande preocupado ou a discutir algo disto. O que se anda a discutir é o que os SSM devem fazer na sua capacidade supletiva, isto é, o apoio à família militar (o que não é despiciendo). Ora a família militar com o fim das campanhas ultramarinas, aumentou muito, ao passo que os efectivos no activo não param de diminuir. Daí a pressão nos hospitais das FAs, alguns dos quais foram, entretanto, fechando…
Ora bem, o apoio à família militar é mais um problema do IASFA do que dos Ramos e respectivos serviços de saúde e pode ser resolvido estabelecendo contratos com os hospitais e centros de saúde civis, o que já acontece em muitos casos.
Acontece também que os hospitais militares estão a abarrotar com doentes, pois apoiam outrossim os efectivos da PSP e GNR (que já dobram o número dos militares…), além de que se alargou o apoio em determinadas especialidades aos utentes da ADSE, ou seja está tudo a trabalhar em ocupação adequada e em proveito de todos.
Há apenas que racionalizar o que for de racionalizar, como aconteceu por ex., no hospital da Força Aérea com a marcação de consultas – que melhorou imenso – depois de um incidente evitável. Não se percebe pois, qual é o problema nem porque o senhor ministro insiste em transformar quatro hospitais que estão a funcionar relativamente bem e reduzi-los a um (mais um hospital no Porto), ainda por cima sem querer gastar um tostão? Quer arranjar um monstro como S. Maria? Mas para ser apenas um, não pode ser qualquer dos militares existentes, pois nenhum deles comporta o volume de trabalho dos quatro, além do que mudar infra-estruturas custará muito dinheiro, fora os símbolos de impossibilidade...E o que fazer com os investimentos que continuadamente se têm feito nos actuais hospitais? E se transferir um fluxo de utentes para os hospitais civis (com o ónus moral na família militar…), não se vai transferir os custos de um lado para o outro?
Tudo isto impondo-se prazos irrealistas. O resultado será o nivelar por baixo, a confusão no sistema, como aconteceu recentemente com as mudanças na “assistência na doença”. E resta esperar que muitos dos profissionais de saúde não façam as malas e abalem...
Porém, a cereja em cima de todo este bolo é a discussão sobre o serviço de urgência militar!
Julgamos que na actual conjuntura não se torna necessário qualquer serviço de urgência conforme aquele que conhecemos nos hospitais que a têm. Nada o justifica (além de que não há meios!). Em primeiro lugar porque a rede de urgências no País é suficiente. Qualquer acidentado militar pode ser transportado para uma delas sem qualquer problema e sem acréscimo de custos. Os hospitais militares, por seu lado, já dispõem de serviços de triagem que podem enviar rapidamente qualquer doente necessitado para uma urgência civil.
Em caso de crise ou guerra o caso pode mudar de figura, mas nessa altura todo o pessoal militar médico e de enfermagem fica mobilizado 24H por dia (adeus consultórios privados e duplo emprego…), e faz-se o que se tiver que fazer.
Ou seja, insistimos em arranjar problemas onde não os há… Onde os há, parece que ninguém quer saber. E problemas nos SSM, existem, fundamentalmente, a nível de recrutamento, formação e retenção de médicos e de enfermeiros; gestão das suas carreiras; na contratação de técnicos civis (não há dinheiro!), e na questão dos vencimentos. Por último, na harmoniosa integração dos SSM no todo militar.
E o que é mais trágico em tudo isto é que os chefes militares não se entendam em privado, e se antagonizem em público.
Eu que sou só TCor – e para alguns lerdo de entendimento – quer-me parecer que devia ser exactamente ao contrário.
João José Brandão Ferreira
Tenente-coronel